Agreste Psicodélico
A trilha
em busca das origens de Paêbirú, o disco maldito de Lula Côrtes e Zé
Ramalho, hoje o vinil mais caro do Brasil
por Por
Cristiano Bastos
No dia 29 de dezembro de 1598, os soldados
liderados pelo capitão-mor da Paraíba, Feliciano Coelho de Carvalho, encalçavam
índios potiguares quando, em meio à caatinga, nas fraldas da Serra da Copaoba
(Planalto de Borborema), um imponente registro de ancestralidade pré-histórica
se impôs à tropa. Às margens do leito seco do rio Araçoajipe, um enorme
monólito revelava, aos estupefatos recrutas, estranhos desenhos esculpidos na
rocha cristalina.
O painel rupestre se encontrava nas paredes
internas de uma furna (formada pela sobreposição de três rochas), e exibia, em
baixo-relevo, caracteres deixados por uma cultura há muito extinta. Os sinais
agrupavam-se às representações de espirais, cruzes e círculos talhados, também,
na plataforma inferior do abrigo rochoso.
Inquietado com a descoberta, Feliciano ordenou
minuciosa medição, mandando copiar todos os caracteres. A ocorrência está
descrita em Diálogos das Grandezas do Brasil, obra editada em 1618. O
autor, Ambrósio Fernandes Brandão (para quem Feliciano Coelho confiou seu
relato), interpretou os símbolos como "figurativos de coisas
vindouras". Não se enganara. O padre francês Teodoro de Lucé descobriu, em
1678, no território paraibano, um segundo monólito, ao se dirigir em missão
jesuítica para o arraial de Carnoió. Seus relatos foram registrados em Relação
de uma Missão do rio São Francisco, escrito pelo frei Martinho de Nantes,
em 1706.
Em 1974, quase 400 anos depois da descoberta do
capitão-mor da Paraíba, os tais "símbolos de coisas vindouras"
regressariam. Dessa vez, no formato e silhueta arredondada de um disco de
vinil. A mais ambiciosa e fantástica incursão psicodélica da música brasileira
- o LP Paêbirú: Caminho da Montanha do Sol, gravado de outubro a
dezembro daquele ano por Lula Côrtes e Zé Ramalho, nos estúdios da gravadora
recifense Rozemblit.
Contar a história do álbum, longe da amálgama das
pessoas, vertentes sonoras e, especialmente, da chamada Pedra do Ingá que o
inspirou, é impossível. Irônico é que o LP original de Paêbirú também
tenha se convertido em "achado arqueológico", assim como a pedra, 33
anos depois de seu lançamento. As histórias sobre a produção do disco, como naufragou
na enchente que submergiu Recife, em 1975 e, por fim, se salvara, são
fascinantes.
A prensagem de Paêbirú foi única: 1.300
cópias. Mil delas, literalmente, foram por água abaixo. A calamidade levou
junto a fita master do disco para que a tragédia ficasse quase completa.
Milagrosamente a salvos ficaram somente 300 exemplares. Bem conservado, o vinil
original de Paêbirú (o selo inglês Mr Bongo o relançou em vinil este
ano) está atualmente avaliado em mais de R$ 4 mil. É o álbum mais caro da
música brasileira. Desbanca, em parâmetros monetários (e sonoros: é
discutível), o "inatingível" Roberto Carlos. O Rei amarga segundo
lugar com Louco por Você, primeiro de sua carreira, avaliado na metade
do preço do "excêntrico" Paêbirú.
A expedição no rastro dos mistérios e fábulas de
Paêbirú se inicia em Olinda (Pernambuco). O artista plástico paraibano Raul
Córdula me recebe em seu ateliêr. Na parede do sobrado histórico, uma cobra
pictográfica serpenteia no quadro pintado por ele. A insígnia foi decalcada da
mesma inscrição que, há milênios, permanece entalhada na Pedra do Ingá.
No mesmo ano de Louco por Você, 1961, o professor
de geografia Leon Clerot apresentou o monumento a Córdula. O professor fizera o
convite: "Me acompanhe, e verás algo que jamais se esquecerá". Uma
década depois, 1972, Raul Córdula se tornou amigo de José Ramalho Neto, o jovem
Zé Ramalho da Paraíba. Os conterrâneos se conheceram no bar Asa Branca, que
Córdula tinha na capital, João Pessoa: "O único boteco que ficava aberto
na Paraíba inteira depois das oito horas da noite, à base de 'mensalão' pago à
polícia". O Zé Ramalho compositor, atesta, nascera no Asa Branca.
Córdula quis mostrar a Ramalho "algo que
conhecera", e organizou uma ida ao município de Ingá do Bacamarte,
localidade conhecida antigamente como Vila do Imperador, por causa da passagem
de Dom Pedro II por lá. A localização de Ingá do Bacamarte é a 85 km de João
Pessoa, caatinga litorânea, na zona de transição do Agreste para o Sertão. Para
"fazer a viagem", Córdula também convidou o artista recifense Lula
Côrtes - jovem homem que já vivera muitas aventuras. Mas aquela, proposta por
Raul, ainda não.
Nenhuma surpresa foi para o guia o fato de Côrtes e
Ramalho ficarem tão maravilhados com a rocha lavrada quanto os expedicionários
do capitão-mor da Paraíba. A charada talhada na parede de pedra lançava-lhes o
provocante desafio: como decifrariam tais arcanos - nunca compreendidos e tão
majestosos - numa música que, se não codificasse, ao menos devesse tributar à
remota ancestralidade brasileira? Fora essa a centelha que incendiara as
idéias. Acampados na caatinga sertaneja, frente a frente com a Pedra do Ingá,
Ramalho e Côrtes se decidiram pela produção de um "álbum conceitual".
O único jeito de conhecer lula Côrtes é ir
visitá-lo no seu habitat: o ateliêr em Jaboatão dos Guararapes. "A Pátria
Nasceu Aqui", divulga a enorme placa na divisa com a capital, Recife. O
apartamento onde mora, pinta e compõe com a atual banda, Má Companhia, tem
vista frontal para o Oceano Atlântico.
É no primeiro apertar de mão que Côrtes deixa
patente quem é: "espírito indômito". Solta a frase para se pensar:
"O mar e eu somos uma coisa só desde menino". Aos 60 anos, sua voz é
profunda e roufenha. A cabeça alva, um dia revestida de pretos cabelos
mouriscos. E a magra, porém resistente, compleição física remete ao obstinado
homem de O Velho e o Mar. Lula tem o velho de Ernst Hemingway, entretanto, como
"altruísta demais". Mais impressionado ficou com o nietzscheniano
capitão Lobo Harsen, de O Lobo do Mar, romance de Jack London. Os arquétipos
marítimos de London, de fato, combinam mais com ele: "Nasci à beira do
mar. Ele me despertou para o cumprimento das fantasias. Nele, um dia, cacei
baleias", conta, jubiloso.
É esse homem que segue narrando a mais homérica jornada
de sua vida, até agora: a concepção do álbum Paêbirú. Guiados pelo parceiro
mais velho, Raul Córdula, Zé Ramalho e Lula Côrtes, recém-amigos, logo de cara
perceberam a fantástica mística que as inscrições da Pedra do Ingá exerciam
sobre a população às cercanias do sítio arqueológico.
Foi por intermédio da arquiteta, hoje cineasta,
Kátia Mesel, sua companheira na época, que Lula Côrtes veio a conhecer Zé
Ramalho. Junto, o casal abriu o selo Abrakadabra, pioneiro na produção de
música independente no Brasil. A "sede" do selo ficava nas
dependências de um prédio pertencente ao pai de Kátia, que, nos tempos da
escravatura, fora uma senzala de escravos.
Para se mergulhar na saga de produção que foi
Paêbirú, é obrigatório antes se falar da simplicidade do instrumental Satwa - o
álbum gerido, um ano antes, por Côrtes e o violonista Lailson de Holanda.
É o début do selo Abrakadabra. Lula faz a estréia
fonográfica da sua cítara popular marroquina, o tricórdio, instrumento que
trouxera da recente viagem ao Marrocos com Kátia. Em Satwa, o violão nordestino
de 12 cordas de Lailson dialoga em perfeita legibilidade com o linguajar
oriental do tricórdio de Lula. É, provavelmente, o encontro mais fino entre o
folk e a psicodelia do qual se tem registro gravado na música brasileira.
Lailson, premiado cartunista, traduz: "Satwa é
expressão do sânscrito: quer dizer 'interface e equilíbrio'". Em 2005, a
norte-americana gravadora Time-Lag Records reeditou Satwa, a partir da master
original. Só o nome, na realidade, foi remodelado: Satwa World Edition. Como
previsto, a edição esgotou como mágica.
Após Satwa, Lula tinha aprimorado suas concepções
musicais. Achava-se apto para o grande projeto que andara tramando com o
parceiro Zé Ramalho desde a visita à "pedra encantada". Não perderam
tempo e investiram em sérias pesquisas nas imediações. Eles caçavam a
interpretação local, folclórica, mitológica sobre o admirável monólito escrito.
Nas adjacências vivia um grupo de índios cariris.
Os músicos foram até eles, atrás da peculiaridade do seu tipo de música.
Ouvindo, descobriram que os traços de uma cultura africana tinham se fundido à
sonoridade dos indígenas.
Se fundamentado em registros arqueológicos, Zé
Ramalho e Lula Côrtes concordaram que, a partir daquele ponto, haveria um
caminho, que partia de São Tomé das Letras (onde existem registros da mesma
escrita rupestre traçada na Pedra do Ingá) e conduzia até Machu Picchu, no
Peru. A trilha que os Cariris chamavam de "Peabirú".
Chegar à mística Pedra do Ingá, hoje em dia, é
fácil. Seguindo pela BR 101, no trecho Recife - Paraíba, as condições de
tráfego são admissíveis, mesmo sem via duplicada. Pela estrada federal, as
pequenas localidades vão se cruzando: Abreu e Lima, Goiana, Itambé, Jupiranga,
Itabaiana, Mojeiro. Tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (Iphan), a Pedra do Ingá (Pedra Lavrada, ou Itaticoara) é um dos
sítios arqueológicos mais soberbos do mundo. O arqueólogo Vanderley de Britto,
da Sociedade Paraibana de Arqueologia, já aguarda, no local, minha chegada.
Segundo ele, as inscrições são originárias de
sociedades pré-históricas, nativos anteriores aos encontrados no Brasil pelos
europeus. "Certamente, essas gravuras" , diz, apontando o imenso painel
de rocha, "são obra de sacerdotes ou pajés. Visavam ritos
mágico-religiosos que visavam sortilégios para tribo", Brito explica, com
sua proficiência.
Próximo à pedra, sem ter de tocá-la, o arqueólogo
continua sua explanação: "As representações registram o canto mágico
solfejado pelos sacerdotes nas cerimônias", prega. A pedra, na opinião do
arqueólogo, seria, para os nativos, um "meio de comunicação" com os
deuses (ou deusas) da natureza. A estimativa da ciência é a de que as gravações
já estejam ali por volta de três a seis mil anos. "Datação exata não é
possível, porque o monólito está em meio ao riacho", esclarece o
professor. Vestígios, por ventura, deixados pelos gravadores, ao cinzelar a
pedra, foram arrastados no trespassar das águas do ancião Araçoajipe.
Dinossauros, o arqueólogo também confirma,
habitaram a região. A probabilidade - nada prosaica - de me banhar no regato
que, num dia qualquer da pré-história um tiranossauro rex sorvera metros
cúbicos de água, passa agora de jornalismo a uma aventura que, com prazer,
obrigo-me pôr em prática.
A água é morna. A sensação, arrepiante.
"Animais de grande porte, como a preguiça e o tatu-gigante, no período
mezosóico, habitaram a região: mastodontes, cavalos nativos e outros
mega-animais também circulavam por aqui", ele lembra. Submerso na tepidez
do plácido regato pré-histórico, um túnel do tempo dentro de minha cabeça fazia
a imaginação vagar por mundos arcaicos desaparecidos na vastidão temporal.
De frente para o mar, lula Côrtes gosta de
acreditar na epopéia interplanetária narrada em "Trilha de Sumé", a
abertura de Paêbirú. "As gravações na Pedra do Ingá foram feitas com raio
laser mesmo", afiança o artista, que cantarola a introdução da música, o
alinhamento dos planetas: "Mercúrio/Vênus/Terra/Marte/Júpiter/Saturno/Urano/Netuno
e Plutão". Os versos seguintes cantam a saga de Sumé, "viajante lunar
que desceu num raio laser e, com a barba vermelha, desenhou no peito a Pedra do
Ingá".
A cada descoberta que faziam com suas explorações,
Côrtes e Ramalho notavam, na variedade de lendas, que todas eram sobre Sumé -
entidade mitológica que teria transmitido conhecimentos aos índios antes da
chegada dos colonizadores. "Todos os indícios levavam a Sumé. Até as
palmeiras da região, por lá, são chamadas de 'sumalenses'", observa Lula.
Para "libertar" os indígenas da crença
pagã, os jesuítas pontificaram Sumé como "santidade": virou São Tomé.
O que explica, no Nordeste, o fato de muitos lugarejos terem sido batizados de
São Tomé. "Aqui é o lugar de São Tomé!", os padres costumavam
anunciar, ao chegar numa região nova.
Na Paraíba, resta uma cidade chamada Sumé.
"Seja lá quem tenha sido Sumé, o que mais se sabe, no entanto, é que muito
andou por essas bandas", brinca Raul Córdula. A despeito da evangelização
católica, a memória do Sumé indígena segue viva em todo o Nordeste.
A crença indígena diz que, quando o pacifista Sumé
se foi embora, expulso pelos guerreiros tupinambás daquelas terras, deixou uma
série de rastros talhados em pedras no meio do caminho. Os índios acreditam que
Sumé teria ido de norte a sul, mata adentro, descerrando a milenar trilha
"Peabirú" - em tupi-guarani, "O Caminho da Montanha do
Sol".
O historiador Eduardo Bueno, que passou anos de sua
vida "veraneando" na praia de Naufragados, no sul da ilha de Santa
Catarina, conta que tomou conhecimento da trilha lendo a aventura de Aleixo
Garcia, o qual, após um tempo vivendo naquela praia, fora informado da
existência de uma "estrada indígena" que conduzia até o Peru.
Após muitos verões chuvosos contemplando o lugar de
onde o bravo Garcia havia partido em sua jornada épica, Bueno decidiu
acompanhá-lo - mas na mente: "Mergulhei em todas as fontes que traziam
relatos de sua viagem. Ficção não era. Tais fontes, embora, eventualmente,
contraditórias entre si, eram da melhor qualidade". O resumo mais
interessante da história, diz, é o que define Peabirú como "um ramal da
majestosa Trilha Inca, que ligava Cuzco a Quito e, por sua vez, outra
corruptela - de 'Apé Biru'". Em tupi-guarani, Apé significa
"caminho", ou "trilha", e Biru é o nome original do Peru.
Portanto, Peabirú significaria "Caminho para o Peru".
Havia três inícios principais desse caminho: um,
partindo de Cananéia (litoral sul de São Paulo) e, outro, da foz do rio
Itapucu, nas proximidades da ilha de São Francisco do Sul (litoral norte de
Santa Catarina). Um terceiro saia da Praça da Sé, em São Paulo, seguia pela rua
Direita, dava na Praça da República, subia a Consolação, descia a Rebouças,
cruzava o Rio Pinheiros e... chegava no Peru. "Fico pensando porque nos
roubaram o prazer de desfrutar essa história no colégio", brinca Bueno.
"Pensando bem, não foi esse o único prazer que nos roubaram, foi?"
Muitas vezes procurado, Zé Ramalho declarou que
"não quer mais falar sobre o assunto Paêbirú" - para ele, encerrado.
Em algumas entrevistas, no entanto, coteja Paêbirú à Tropicália. Um dos
comentários é sobre o jeito artesanal, "como se costurado à mão", que
o álbum foi feito.
Agendo uma "audição comentada" de Paêbirú
no ateliêr de Lula Côrtes. Enquanto, pacientemente, pinta o quadro de um farol,
vai me explicando como tornaram possível (e viável) a engenhosa gravação do
disco. O álbum - duplo - é dividido em quatro lados, de acordo com os elementos
Terra, Ar, Fogo e Água.
Em "Terra", o resultado
"telúrico" foi conseguido com tambores, flautas em sol e dó, congas e
sax alto. "Simulamos, com onomatopéias, 'aves do céu', 'pássaros em vôo' e
adicionamos o berimbau, além do tricórdio", ele conta. Contrariando a
prática dos "encartes vazios", a gama de instrumentos utilizados está
descrita na ficha técnica de Paêbirú.
Efeitos de estúdio, nem pensar: "Só havia as
pessoas, vozes e instrumentos", comenta o artista. Certos efeitos, como o
rasgar da folha de um coqueiro, por exemplo, muitos pensaram serem eletrônicos.
No lado "Ar", além de
"conversas", "risadas" e "suspiros",
selecionaram-se harpas e violas sopros para músicas como "Harpa dos
Hares", "Não Existe Molhado Igual ao Pranto" e "Omm".
Em "Água", as músicas têm fundo sonoro de água corrente. No mesmo
lado, cantos africanos, louvações à Iemanjá e a outras entidades
representativas do elemento. Na mais dançante, o baião lisérgico "Pedra
Templo Animal", Lula Côrtes toca "trompas marinhas". Zé Ramalho
pilota o okulelê.
"Fogo", como adverte o nome, é a faceta
incendiária de Paêbirú. A mais roqueira também. Entram sons trovejantes: o
wha-wha distorcido do tricórdio e a psicopatia do órgão Farfisa em "Nas
Paredes da Pedra Encantada". "Raga dos Raios" conserva-se, mais
de 30 anos depois, como a melhor peça de guitarra fuzz gravada no rock
nacional: "Guitarreira elétrica & nervosa de Dom Tronxo", diz a
ficha técnica. Onde andará Dom Tronxo?
O encarte sofisticado de Paêbirú é obra de Kátia
Mesel. Além de designer, ela fez a produção executiva do álbum. "São mais
de 20 pessoas tocando no disco - basicamente, toda a cena pernambucana e boa
parte da paraibana", a cineasta enumera.
O disco só deu certo, na opinião de Kátia, porque
foi feito com a alma e a criatividade soltas. "Num estúdio de dois canais,
baby? Era o playback do playback do playback! A gente se consolava: 'Se os
Stones gravaram na Jamaica em dois canais, por que a gente não?' Em 'Trilha de
Sumé', Alceu Valença toca pente com papel celofane. [O disco] tem desses
requintes", graceja.
Foi o zelo de Kátia, na realidade, que garantiu o
salvamento de 300 cópias de Paêbirú da enchente de 1975. Ela guardara parte da
tiragem na Casa de Beberibe, onde o casal morava - o ambiente em que muitas
canções foram, gradualmente, tomando forma. "A sorte é que eu tinha
deixado os discos no andar de cima. São esses que, atualmente, valem uma
fortuna mundo afora", pontua Kátia.
Naquele tempo, Ramalho praticamente morava com o
casal na Casa de Beberibe. A concepção gráfica do álbum foi obtida após muitas
idas do trio à Pedra do Ingá. Na verdade, um quarteto, já que o irmão de Kátia,
o fotógrafo Fred Mesel, seguia junto em algumas viagens. "Eu filmava em
Super 8 e Fred tirava fotos da pedra com filme infravermelho", ela conta.
A técnica fotográfica explica a tonalidade azul-cítrica da capa e da parte
interior de Paêbirú.
Especial atenção foi dada à ficha técnica. No
encarte central, fotos de todas as pessoas que participaram das gravações. Um
detalhe é que todos os títulos foram montados à mão, um a um, em letra set. A
diferença é que, a essa altura, Kátia era mais experiente: além de Satwa,
também produzira a arte do único álbum de Marconi Notaro, No Sub Reino dos
Metazoá-rios (1973). "Para lançar Paêbirú, criamos o selo Solar",
acrescenta.
As substâncias psicodélicas, obviamente, foram
muito importantes durante o processo de composição. Para Lula Côrtes, no
entanto, só de estar perto da Pedra do Ingá, é possível sentir o xamanismo
emanando do monumento rochoso: "Comíamos cogumelos mais como 'licença
poé-tica mental'", justifica o artista.
Crosby, Stills and Nash, T-Rex, Captain Beefheart,
Grand Funk Railroad e The Byrds eram as bandas mais ouvidas pelo grupo na
época. Em meados da década de 1970, a maquiagem do glitter rock já estava
borrada e, nos Estados Unidos, a semente punk aflorava nos buracos sujos de
Nova York. A disco music ensaiava os primeiros passos de dança. Psicodelia, no
mundo, era coisa ultrapassada: encapsulara-se nos remotos anos 60.
Zé da Flauta tinha 18 anos quando conheceu Lula e
Kátia. No auge da repressão, a Casa de Beberibe era o templo da liberdade e da
contracultura. "Aprendi muito sobre arte. Lá se conversava sobre tudo,
inclusive se fumava muita maconha", confirma Zé. Ele tocou sax na vigorosa
"Nas Paredes da Pedra Encantada". "Jamais me esquecerei, aliás:
foi a primeira vez que entrei num estúdio e gravei profissionalmente como
músico."
Outro que teve "participação relâmpago"
foi o paraibano Hugo Leão, o Huguinho. Ele vinha das bandas The Gentlemen e os
Quatro Loucos, nas quais Zé Ramalho tocava guitarra. Ramalho o chamou para
participar como tecladista do "ousado projeto". Sua atuação ficou
imortalizada no disco. São dele os riffs de órgão Farfisa em "Nas
Paredes..."
Para assumir a bateria, Ramalho recrutou Carmelo
Guedes, outro parceiro seu nos Gentlemen. A mágica, lembra Huguinho, começou
logo que entraram no estúdio. As bases foram criadas na hora, como num susto:
"Cravei um tom maior: Mi! O sonho começara. Os segredos da Pedra do Ingá,
finalmente, pareciam que seriam desvendados. A guinada sonora ainda ecoa pelo
espaço", acredita.
Em minha jornada, sigo para a capital paraibana. Em
João Pessoa, Telma Ramalho, a prima mais jovem de Zé Ramalho, diz não esquecer
uma passagem da pré-adolescência: a mãe, Teresinha de Jesus Ramalho Pordeus,
professora de História, conversava com o sobrinho em seu escritório: "Zé
contava a ela como se desenrolavam as gravações de Paêbirú".Uma lembrança
viva é ter ouvido o disco aos 12 anos: "Não entendi nada. Só lembro de
'Pedra Templo Animal' e 'Trilha de Sumé', as mais pop", diverte-se.
Outra memória é ter apresentado uma réplica da
Pedra do Ingá na feira de ciências do colégio. A trilha sonora foi Paêbirú.
"Levei a vitrolinha e botei para rodar." Telma faz a contundente
revelação: "Tive caixas de Paêbirú em casa. Uma verdadeira fortuna
cultural e financeira".
Para Cristhian Ramalho, filho de Zé Ramalho e
afilhado de Lula Côrtes, Paêbirú também tem significação especial: "Meu
pai me levava à Pedra do Ingá quando criança. Ele ia para achar
inspiração". Sem dúvida, diz Cristhian, Paêbirú e a Pedra ainda exercem
influência sobre a sua obra. "Em 1975, ele escreveu uma poesia muito
bonita, que diz: 'Venho de uma dessas pedras rolantes'. Houve, por parte dele,
grande misticismo envolvido na minha chegada", conta, orgulhoso, o filho.
Uma das pessoas que, na época do lançamento,
compraram o álbum foi a arquiteta Terêsa Pimentel. Aos 14 anos, em 1974, ela
não sabia ao certo o que procurava na sua vida. Apesar disso, sabia "o que
não queria". "Ouvíamos os locais: Ave Sangria, Marconi Notaro,
Flaviola & O Bando do Sol, Aristides Guimarães, o 'udigrudi' nordestino.
Vendi minha bicicleta Caloi verde-água para comprar Paêbirú. Hoje, sou feliz
por ter vendido a bicicleta e ter adolescido naquela atmosfera", conta.
Terêsa é irmã do músico Lenine, ao qual Lula Côrtes presenteou com sua última
cópia de Paêbirú, há alguns anos. "Para tirar uns samplers", diz
Lula.
De Jaboatão dos Guararapes, eu e Lula seguimos para
a casa de Alceu Valença, no centro histórico de Olinda. Lula bate à porta do
casarão. Festa quando Valença cruza o amplo saguão para saudar Lula, velho
parceiro em Molhado de Suor, um dos seus primeiros discos.
"A gente tocou em 'Danado para Catende', que
depois virou 'Trem de Catende'", Alceu conta. "Até então Lula só
compunha, mas não cantava. Fiz a cabeça do pessoal da Ariola: 'O cara é o
máximo!' Na gravadora, ninguém tinha a menor idéia de quem era o cara, muito
menos que fizera algo como Paêbirú."
Souberam, no entanto, quando o álbum Gosto Novo da
Vida, de Lula Côrtes, foi premiado como "a melhor venda do ano da
gravadora Ariola", em 1981. Em três meses, vendeu 32 mil cópias. Depois,
teve sua reedição emperrada por causa de um processo movido pela Rozemblit, que
alegava plágio em uma música.
"Foi o primeiro artista que vi fumar no palco,
no Teatro João Alcântara", diz Alceu.
Ambos riem. Lula acende um cigarro.
"Participei de Paêbirú. Dei uns gritos
lá", resume Alceu.
"Foi na reza de 'Não Existe Molhado Igual ao
Pranto'", Lula emenda.
"O estúdio da Rozemblit tinha acústica
maravilhosa. Era o ambiente mais natural possível: cheguei e fui me deitando
num canto. A banda tocava. Sonolento, me espreguicei: 'Ommmmmmmm...'."
"Foi como num mantra. Quando Alceu começou,
todo mundo veio atrás e não parou mais", conclui Lula.
É nessa tradição do "livre espírito" que
Paêbirú foi realizado. No texto homônimo - uma raridade datilografada só
encontrada no interior dos LPs sobreviventes da cheia e escrito depois da
ingestão de cogumelos colhidos no meio do caminho -, Lula Côrtes nos dá uma
última idéia da grande aventura que foi Paêbirú: "Nós caçávamos o passado,
e os corações se encheram de esperança com aquela visão. O caminho que havíamos
abandonado mais atrás era o das Pedra de Fogo, outro pequeno aglomerado quase
sem nenhuma chance de vida. A água é muito escassa. Conversávamos sobre as
pedras. E ao longo, no horizonte, o lombo prateado da Borborema desenha curvas
leves, demonstrativas de sua imensa idade. Os nativos tinham mapas nos rostos,
o sol lhes rachou os lábios como racha a terra, as pedras duras e afiadas que
dificultavam a caminhada lhes endureceu o riso. A informação parecia estar
correta. Achamos o regato e acompanhamos o sentido. A água era clara e bastante
salgada. A irrealidade se apossava cada vez mais dos nossos corpos e mentes, e
toda a lenda que nos havia enchido os ouvidos, até aquele dia, parecia florar
de tudo."
Fonte: http://rollingstone.uol.com.br/edicao/24/agreste-psicodelico
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