BRASÍLIA - Em meio à poeira que
sobe do chão de terra no barracão de madeira, meninos da etnia Nambikwara
tentam aprender tabuada. Um quadro-negro improvisado e carteiras quebradas
completam o cenário de abandono da escola indígena de Comodoro (MT). A
realidade mato-grossense é apenas uma amostra do que se repete nos 3.138
colégios indígenas no Brasil. Um terço deles não conta sequer com prédio
escolar, definido pelo governo federal como a estrutura de padrões mínimos para
realização de atividades educacionais.
Sem espaços físicos adequados,
grande parte das escolas indígenas funciona na casa dos professores, em
armazéns, e até embaixo de árvores. A fonte de água para quase metade dos
estabelecimentos vem de rios, igarapés ou córregos. Luz elétrica pública só
chega a pouco mais de 40% dos colégios, e apenas 49% trabalham com algum tipo
de material didático específico da cultura indígena. Os dados são de
levantamento do Grupo de Trabalho (GT) Educação Indígena do Ministério Público
Federal (MPF).
Denominado MPF em Defesa da
Escola Indígena, o projeto levantou dados a partir do Censo Escolar 2014,
aplicado pelo Instituto Nacional de Pesquisa Educacionais (Inep) anualmente. Em
seguida, começou a fazer inspeções em escolas dentro de terras indígenas
devidamente regularizadas. As visitas revelaram que a precariedade mostrada
pelos números era muito pior de perto. Na primeira parada da equipe do MPF,
ainda no perímetro urbano de Tabatinga (AM), alunos estavam sendo dispensados
mais cedo por falta de merenda.
— Embora quase todas as escolas
declarem, no Censo Escolar, que recebem merenda, vimos que a distribuição não é
regular, levando até à redução de carga horária das aulas no Norte — afirma a
procuradora da República Natália Soares, que coordena o GT Educação Indígena do
MPF.
VERBA ADICIONAL DE MERENDA NÃO
CHEGA
Outro problema, segundo a
procuradora, é que o repasse adicional para merenda. Em escolas regulares, o
valor é de R$ 0,30 por aluno. Em colégios indígenas, chega a R$ 0,60. A
transferência é feita pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
(FNDE), ligado ao Ministério da Educação (MEC). Esse valor adicional destinado
a crianças indígenas, no entanto, se perde no meio do caminho. Na maioria das
vezes, explica Natália, as secretarias de educação fazem uma compra
centralizada e distribuem os alimentos de forma igualitária em todas as
escolas. Natália critica ainda o fato de o governo federal só destinar o
recurso adicional para escolas dentro de terras regularizadas.
— Dois terços das terras
indígenas no Brasil ainda esperam regularização. Então, essas crianças são
penalizadas duas vezes, porque o Estado demora a demarcar seus territórios e,
por isso mesmo, elas ficam sem receber o recurso suplementar da merenda — diz
Natália Soares.
Do total de escolas indígenas no
país, 46% estão sem regulamentação. Isso significa que elas não passaram por um
processo de autorização, a partir de um projeto pedagógico, do conselho ou
órgão local de educação, explica Leonardo Leocádio, perito em antropologia do
MPF. Tal condição não impede o repasse de recursos atrelados ao número de
alunos, como merenda escolar ou verbas do Fundeb. Mas tudo que for além disso,
ressalta o perito, fica ameaçado devido à falta de regulamentação.
— Investimentos em
infraestrutura, em apoio pedagógico ou contratação de professores se tornam
mais difíceis. São escolas que geralmente funcionam na forma de sala de aula
anexa ligada a uma outra instituição — afirma Leonardo Leocádio.
Para ele, preocupa o fato de 90%
das escolas indígenas não terem abastecimento de água tratada, vinda da rede
pública geral. Em 58% dos estabelecimentos, a água consumida não é filtrada.
Doutora em linguística,
missionária há 42 anos do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e assessora
para projetos de educação escolar indígena, Eunice Dias de Paula lamenta que os
avanços conquistados na legislação, por meio da própria Constituição e da Lei
de Diretrizes e Bases da Educação, não saíram do papel. Um deles é garantir a
alfabetização no idioma materno. Embora 67% das escolas declarem utilizar a
língua indígena no processo de aprendizado, apenas 51% apontam ter algum
material didático específico.
— Continua a prática
colonialista. O que chega nas escolas indígenas são os livros distribuídos para
todos, com conteúdos que não têm nada a ver com o mundo deles. Os saberes
indígenas deveriam estar institucionalizados na educação — defende Eunice.
Nas inspeções ainda em curso do
MPF, que já visitou 29 escolas do Norte, Nordeste e Centro-Oeste, os materiais
didáticos específicos da cultura indígena se resumiam, na maioria das vezes, a
cartilhas feitas pelos próprios professores. Caso de uma comunidade de Tikunas,
no Amazonas. Lá, o único material voltado para os costumes locais era um
compêndio de cantos indígenas, conta o antropólogo Leonardo Leocádio.
Somente 13% das escolas indígenas
têm acesso à internet e 5,2% contam com o serviço de banda larga. A suspeita do
MPF — de que, até pela falta de conexão, não são os profissionais das próprias
escolas que preenchem o Censo Escolar — se confirmou durante as visitas. A
tarefa, em muitos casos, fica a cargo de servidores que não conhecem a
realidade das aldeias.
Uma inconsistência flagrante nos
dados do Censo, de acordo com o MPF, foi a situação de 18 escolas que
declararam ter mais de 365 dias letivos no ano. Nas escolas indígenas
amazonenses Kokama São José e Weupu, por exemplo, a carga que aparece é de 688
dias anuais. Segundo a procuradora Natália, o MEC precisa aperfeiçoar o
processo de preenchimento do questionário para ter dados mais precisos, a fim de
que o Censo Escolar reflita, de fato, a realidade.
— Vemos que a precariedade é tão
grande e tão antiga que as coisas vão se arrumando na base do jeitinho, o que
leva a contratações provisórias de professores por anos e anos, casas sendo
improvisadas como salas de aula e escolas sem regulamentação — diz Natália
Soares.
SEM ENSINO MÉDIO NAS COMUNIDADES
Depois de vencerem tantas
dificuldades para concluir o ensino fundamental, os indígenas precisam sair de
suas comunidades se quiserem prosseguir os estudos, pois apenas 9% das escolas
nas comunidades ofertam o ensino médio regular. Na modalidade jovens e adultos,
essa etapa está presente em menos de 4% dos colégios. A situação levou o MPF no
Rio de janeiro a ingressar com uma ação civil pública pedindo a abertura de
turmas de ensino médio para os índios da etnia Guarani Mbya em Angra dos Reis e
Paraty.
A Justiça indeferiu o pedido, que
havia sido feito em caráter liminar, alegando que uma decisão provisória com
impacto direto no orçamento do Estado do Rio e da União, réus na ação, poderia
comprometer direitos fundamentais de terceiros. O MPF recorreu.
A situação encontrada pelo MPF de
municípios que não destinam aos estudantes indígenas, na hora de distribuir a
merenda, o valor a mais repassado pelo governo federal a eles foi condenada
pelo FNDE. O órgão federal responsável pela execução do Programa Nacional de
Alimentação Escolar informou que, assim que tiver acesso à lista de municípios
que adotam tal prática, demandará os “respectivos Conselhos de Alimentação
Escolar no sentido de averiguar a situação”.
O FNDE informou ainda que o
repasse financeiro diferenciado para a merenda escolar é garantido a todas as
escolas que se declararem como indígenas, estando ou não dentro de terras
regularizadas. Neste ano, foram repassados R$ 14,2 milhões para alimentação nas
escolas indígenas, segundo o FNDE.
O MEC informou, em nota, ser
possível que as escolas tenham mais de 365 dias entre o início e o fim do ano
letivo porque atividades extracurriculares, metodologias diferenciadas e
paralisações estão abrangidas no período. A pasta confirmou os principais dados
levantados pelo MPF, mas não comentou itens importantes, como a falta de
materiais didáticos específicos em metade das escolas indígenas. O MEC ressaltou
ainda que colabora com as ações do MPF porque entende que trazem subsídios para
o aprimoramento dos programas educacionais.
A Funai não respondeu ao pedido de entrevista.
Acesso em 20.07.2015
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